Vir ao mundo não é uma escolha nossa, não decidimos estar aqui. Há quem defina como uma graça divina, afinal. Se, em meio a tantas possibilidades biológicas, fomos os “escolhidos”, sim, somos então vencedores. Para outros, o acaso serve de explicação. O fato é que a vida enquanto trajetória, forma de caminhar e existir, em muitos casos, agrega uma infinidade de escolhas e boa parte delas são nossas.
Os entrevistados do mês de julho estão geograficamente distantes e quem poderia imaginar, em um passado recente, um diálogo tão rápido e dinâmico entre três pessoas: uma delas sob a quentura teresinense (Brasil) e as outras duas sob o alívio do verão europeu.
A fotógrafa polonesa Irmina Walczak e o fotógrafo brasileiro Sávio Freire, pais de Yasmin, Kaje e Elinor, acabam de regressar à Polônia, vindos da Espanha. Em entrevista ao site Humanismo Caboclo, falam sobre fotografia, educação dos filhos, os desafios da construção do livro “Retratos pra Yayá”, amamentação em espaços públicos, nu e censura. No fim das contas, convidam-nos a uma reflexão sobre os modos de estar no mundo.
Sem mais delongas, é hora de pegar carona com o Palmito.
Quem acompanha os relatos de vocês nas redes sociais tem uma noção dos prazeres e desafios de viver sob um teto que tem pneus como alicerces. A aventura tem valido a pena? Como se deu o processo de adaptação das crianças?
Acho que se abrir a novas experiências geralmente vale a pena. Pela primeira vez temos a oportunidade de estarmos onde queremos e isso é, de certa forma, uma liberdade com a qual não estávamos acostumados. De repente parece estranho escolher pra onde se vai. A gente precisou se adaptar a essa dinâmica tão desejada, porém incomum. Isso tomou-nos um tempo e nem sempre foi fácil. Imagino que seja mais ou menos como soltar um passarinho que se encontrava preso na gaiola. Há, sem duvida, um momento de hesitação, seguido por alguma reflexão e algum tempo de adaptação. Não é um processo fácil, nem pra eles nem pra gente. Exige uma mudança de dinâmica. Por incrível que pareça, é uma vida que exige uma disciplina muito maior. A gente precisa lidar com a limitação dos recursos naturais como água e energia, precisa diariamente saber do nosso próximo paradeiro, ter um planejamento financeiro mais rígido, devido a possibilidade maior dos gastos eventuais, e encontrar lugares aonde as crianças vão estar livres para brincar e nós tranquilos para trabalhar. Enfim, é uma vida que pode ser prazerosa, mas é muito exigente. Acho que já passamos pelo mais difícil – um inverno chuvoso no norte da França – por meio do qual entendemos que para aproveitar ao máximo essa nova vida precisamos ficar atentos ao clima. O frio e a chuva são capazes de transformar a liberdade que a vida nômade oferece em aprisionamento.
Nesse contexto nômade, como se dá o processo educacional dos filhos?
O processo educacional é o mesmo que antes. Os nossos filhos não iam para escola mesmo com a vida feita num lugar só. O nosso desejo sempre foi que eles aprendam com as próprias experiências. A diferença é que na estrada eles são apresentados a uma variedade maior de experiências. Eles conseguem entender que o mundo é grande e que podem se sentir em casa em qualquer lugar do planeta. Acho que isso age positivamente na autoconfiança deles. É uma expansão de horizontes. Mas isso, como em uma vida imóvel, depende muito mais da gente e de que tipo de experiência apresentamos aos nossos filhos.
Acreditamos que, quanto maior e mais diverso for o repertório cultural deles, mais abertos serão ao mundo e mais compreensíveis com as diferenças humanas.
Além disso, a Yayá está matriculada numa escola e realiza o programa de ensino básico no sistema homeschooling, isto é, educação em casa. Na Polônia, a partir de 6 anos de idade, a educação é obrigatória e o homeschooling é a única opção para quem não deseja mandar seu filho para escola. Ao contrário da França ou Inglaterra onde é possível deixar uma criança fora do sistema educacional e praticar, o assim chamado unschooling. Na prática, todo ano, ela recebe livros didáticos do governo polonês e, como gosta muito dos livros, o processo de aprendizado programático está se realizando através deles. Como nunca teve nenhuma pressão escolar para aprender a ler precocemente, com 8 anos parecia estar pronta para a alfabetização e, com isso, em 3 meses de inverno ela aprendeu a ler e escrever por conta própria. Com a chegada da primavera e do verão, ela já preferia brincar fora dos livros e a gente respeitou o desejo dela sem nenhuma exigência adicional, confiando nos seus processos e no seu tempo.
Na estrada, encontramos muitas famílias com filhos em regime de homeschooling e unschooling. Muitas delas moram em área rural. Então costumamos estacionar o carro no terreno deles e passar tempo juntos. Cada família que visitamos nos ensina algo, nos inspira e proporciona vivências ímpares.
Observamos que as crianças saem desses encontros transformadas. E é lindo observar a potencialidade delas e como são capazes de aprender com o universo a sua volta. A gente precisa desconstruir o aprendizado. Aprender é como comer ou ir ao banheiro: uma necessidade. Se ele não está acontecendo dessa forma é porque nós adultos intervimos de forma inadequada. Precisamos acreditar mais no potencial das crianças e entender que elas vão aprender o que é importante e necessário para elas.
De onde vem esse apego tão nítido pela natureza?
Na atualidade, nós, seres humanos, enxergamos a natureza como algo dissociado da gente. Como se existissem os humanos nos centros urbanos e a natureza para ser visitada nas férias ou num fim de semana. Queremos que nossos filhos entendam que somos parte dela. Para isso, eles precisam poder observá-la de dentro e interagir com ela. Acho que grande parte dos males da nossa sociedade vem do distanciamento do natural. A gente se sente perdido porque esquecemos de onde viemos. Me parece que a natureza nos fornece tudo que precisamos para ter uma vida plena. Não acredito em outro caminho que não esteja em harmonia com ela, sendo parte dela. Ela nos ensina a viver o presente, a observar, a ter paciência, a não julgar. Ela nos acalma, coloca em ritmos, desafia e ensina a aceitar.
Em entrevista à revista OLD (2017), vocês descreveram buscas, modos de caminhar enquanto família, indivíduos. Entre eles, citaram “a infância livre”. Do que se trata?
Acho que cada um vai encontrar um significado distinto para o termo. Para nós, infância livre é o respeito da criança como indivíduo. A compreensão de que nós adultos não somos os únicos detentores do saber. A criança vem ao mundo com um saber diferente do nosso, porque já fomos alterados por anos e anos de interação social. Ela tem o saber puro, feito de intuição, curiosidade, confiança na bondade dos outros e muita conexão espiritual e a gente tem muita dificuldade em decodificar tudo isso. Falta tempo para observá-los e estabelecer conexão. A vida moderna nos consome.
Entretanto, o termo, apesar de permitir várias definições, não tolera uma: a de que a infância livre seja livre dos pais. Aliás, sem a presença destes, a infância livre não é possível. Devemos estar próximos para doar afeto, deixá-los seguros e não para reprimi-los. Nossos filhos têm o costume de brincar em volta da gente. De vez em quando percebemos que, ao brincar com algumas crianças, eles somem, e mais, evitam estar próximos mudando sempre o lugar da brincadeira. Isso porque aqueles amigos não querem brincar com adultos em volta. Já não confiam nos adultos. Acreditam que sempre vai haver algum tipo de julgamento e repressão. O adulto é aquele que acaba com a brincadeira. E nós, adultos, temos que levar esse tipo de comportamento a sério; temos que parar de achar que a nossa função é a de corrigir as crianças. Temos que aprender a estar junto somente para oferecer algo, seja carinho, atenção, segurança; e evitar de retirar qualquer coisa delas. Esse caminho só é possível por meio de um trabalho interno pessoal nosso, dos pais. Eu diria que o principal trabalho é o de se desfazer do medo do julgamento alheio. Quanto mais nos preocupamos com o que os outros vão pensar, mais retiramos dos nossos filhos e menos oferecemos a eles.
De que modo a fotografia reflete suas buscas?
O que tem de mais belo no processo fotográfico é a transparência. Dizem que uma foto diz muito mais sobre o fotógrafo que sobre o fotografado. Faz sentido. Talvez o observador distante não consiga decifrar a imagem, mas nós, se quisermos nos acessar de fato, vamos perceber que muitas questões estão ali, entranhadas na imagem.
Nós decidimos seguir esse caminho de compreensão de nós mesmos e do mundo que nos cerca por meio da fotografia. Decidimos misturar tudo contrariando os ensinamentos e treinamentos que havíamos recebido. Decidimos não nos dividir entre “eu no trabalho” e “eu na vida particular”.
Ao meu ver, essa fragmentação da vida traz consequências sérias – uma confusão de identidade. Aqui na Polônia, país em que nasci, qualquer tipo de trabalho traz um peso enorme. Quando as pessoas cortam a grama no quintal, dá pra ver na expressão de seus rostos que aquele fazer é duro, desprovido de qualquer prazer e fechado a qualquer aprendizado. É somente algo que deve ser feito. Em algum momento, lá atrás, a gente decidiu desconstruir esse determinismo. Decidimos buscar a leveza e o prazer. Não nos parecia interessante retirar o propósito de qualquer mínima ação realizada durante o dia. A fotografia entrou nessa ordem e hoje fotografamos somente aquilo que faz sentido para gente. Escolhemos a família como principal tema de interesse por ser algo que dialoga com aquilo que vivemos e acho que esse é o nosso espelho de hoje.
Há imagens por todos os cantos, nas telas, na vida fora delas, dos muros de Londres a um mural de uma igreja no interior do Piauí, Brasil. Nesse emaranhado de imagens, o que torna a fotografia uma imagem diferente? O que faz da fotografia uma arte necessária?
Existe uma crença de que a fotografia é capaz de mudar o mundo e talvez seja. Se ela for capaz de me mudar, eu já estou satisfeita e o mundo já foi alterado. Sem dúvida, o excesso de imagem pode ser um agente dessensibilizador. Lembro que quando cheguei ao Brasil pela primeira vez, fiquei chocada com tantas crianças vivendo nas ruas e pedindo dinheiro nos sinais. Me parecia que os brasileiros não compartilhavam do mesmo choque e isso me deixava indignada. Passados 13 anos no país, posso afirmar que o choque não era mais o mesmo e que, pouco a pouco, o sentimento se minimizava. Eu estava naturalizando a situação. Acho que o mesmo acontece com a fotografia. Desde o fotojornalismo, passando pelas fotografias de arte, de paisagens ou qualquer gênero.
No nosso caso, a gente tem percebido, cada vez mais, um prazer sensorial na fotografia. Uma espécie de degustar estético “tout court”. Esse interesse no estudo estético sempre existiu no nosso fazer, mas acho que ele estava um pouco diluído na importância que a gente enxergava na preservação da memória nossa, dos nossos filhos ou de outras famílias que fotografávamos. Era como fotografar no presente para que no futuro a pessoa encontre alguma utilidade em observar o que já passou. Quando olhamos os arquivos de alguns anos atrás, continuamos nos encantando por essa função da fotografia. É muito divertido perceber o interesse das crianças naquilo e o quanto podemos passar um momento bom revendo as fotos de momentos que já passaram. No entanto, por algum motivo, essa degustação estética presente, que de certa forma não é totalmente isenta de memória, nos atrai cada vez mais. Talvez é a busca de viver mais o presente e dar sentido ao nosso fazer no momento da feitura. Enfim, respondendo a sua questão, uma vez que a fotografia é uma arte necessária pra mim, acredito que pode ser pra muita gente. Cada um, a seu modo e no próprio tempo, encontrando algum valor nela.
Já lhes devem ter feito 999 vezes essa pergunta (risos), vamos à milésima: o que é fotografia orgânica?
A fotografia orgânica nasceu um pouco em oposição às inúmeras categorizações fotográficas que encontramos por aí. Cada uma com suas regras, sua maneira de fazer, suas lições e passo a passo. Ela é a ideia, de certa forma, de categorizar o incategorizável, a sobra das regras que escorre pelas mãos. Talvez, por essa característica, a gente evite o termo e só volta a ele quando alguém nos pergunta (risos). Nos parece que mesmo a utilização de uma categoria mais abrangente e sem o intuito de criar amarras corre o perigo de se tonar mais uma das inúmeras restrições com a qual a fotografia tem que lidar. A gente sempre busca se apoiar em algo. A liberdade é um sentimento que costuma nos causar medo. Pensar dentro da caixa nos parece mais seguro. É um pouco como oferecer boias a uma criança que não sabe nadar ou rodinhas laterais as que não sabem pedalar. Isso não os ensina nada, mas os deixa mais seguros. Na criação desse termo encontramos uma maneira de dizer para as pessoas que não é necessário seguir nenhum modelo, menos ainda sem refletir em torno de si mesmos. É conseguir encontrar o seu jeito de fazer ou mesclar os modelos. É estar livre e aberto à experimentação. É entender que os caminhos são infinitos. É parar de padronizar e sistematizar o ser humano. Na fotografia orgânica a única regra é a ausência das regras e dos preceitos. Cada caso é um caso e eu posso me adaptar a diferentes realidades utilizando meu conhecimento, minhas experiências e minha intuição da maneira como eu achar adequado. É algo vivo e mutável.
Que desafios o processo de registro da memória visual que constitui o livro “Retratos pra Yayá” trouxe-lhes? Como trabalharam diante da linha tênue que separa o olhar materno/paterno do olhar fotográfico?
O maior desafio nesse processo era justamente essa separação do olhar parental do olhar fotográfico que você cita. Foi a Sally Mann quem disse que para fotografar os filhos daquela forma que ela fazia, ela precisava agir com frieza. Aquilo nos chamou atenção porque foge da relação próxima e afetiva que procuramos criar com os nossos filhos. Até a gente entender que não tem nada a ver com proximidade e afetividade mas com apego. O olhar fotográfico é desapegado. O olhar materno/paterno se apega a determinadas simbologias que são de cunho pessoal. Uma foto da primeira refeição ou dos primeiros passos de um bebê são importantes somente para seus próximos. Aquela carinha fofa que o seu filho faz, e que você se derrete cada vez que vê, só toca a você. Durante a viagem, conhecemos uma família de 4 filhos em que a mãe colecionava fotos de todos os momentos de cada um deles e da família durante um ano. Em seguida, ela fazia um álbum catalogado por mês e isso todos os anos. Aquela memória é importante e rica para eles, mas aquela mãe jamais pensaria em fazer um fotolivro público dessas imagens, porque somente eles podem ver a beleza contida naquelas historias. A fotografia do cotidiano, para transpassar o caráter privado e ganhar importância universal, precisa estar imbuída em olhar fotográfico. Pensando nisso, desde o ato de fotografar até a curadoria das imagens, tentamos sempre nos distanciar da nossa condição de mãe e pai. E mesmo com esse pensamento que nos permeou durante os 5 anos de feitura das imagens, ainda hesitávamos entre a produção de um livro ou a feitura de um álbum familiar privado. O financiamento coletivo era uma espécie de teste, a fim de tirar a prova e descobrir se aquele projeto tinha uma função mais ampla e se fazia sentido para outras pessoas. Finalmente, e felizmente, descobrimos que muitos se reconheciam na figura da Yayá e nos caminhos que trilhamos a partir da chegada dela.
Em algumas ocasiões, postagens feitas nas redes sociais de vocês foram de algum modo censuradas. Fotografias com um ponto em comum, o nu, sem qualquer tendência à erotização, cabe salientar. Que tipo de reflexão sobre a sociedade podemos fazer a partir dessas situações? Porque o nu ainda incomoda se é parte do humano?
Aqui voltamos ao nosso distanciamento do natural. Me parece óbvio que a erotização da nudez é uma visão artificial e socialmente criada. Mais uma vez, a nossa função como pais não é a de mostrar a realidade do mundo para os nossos filhos. Eles são capazes de entender por si só, ou mesmo com a nossa ajuda, quando o momento certo chegar. Com 5 anos, a Yasmin ficava completamente nua em uma praia cheia de gente. Aquilo não a incomodava e em nenhum momento ela se perguntava porque só ela estava nua. Ela queria estar nua, a gente nunca proibiu, e ela tirava a roupa onde e quando sentia essa necessidade. Agora, com oito anos, a gente percebe que ela já não quer ficar sem roupas em público. Houve aí um aprendizado social. Certamente, se todos vivêssemos nus, ela continuaria ficando sem roupa em público. Uma vez, numa conversa sobre co-sleeping (dormir em família no mesmo quarto ou na mesma cama), alguém nos disse que não se preocupava em reprimir a prática porque não conhecia nenhum adolescente que queria dormir junto dos pais. A gente subestima a inteligência das crianças. Enquanto a humanidade está atolada de trabalho ou inundada no individualismo, os pequenos estão observando o mundo ao redor deles. Não sou eu quem vai transmitir a ideia de sexualização da nudez para meus filhos. Até porque eu não acho que seja uma mentalidade sã. Já em relação à fotografia, as fotos que fazemos trazem a público um olhar fotográfico sobre o cotidiano. Se meus filhos ficam nus constantemente, não deixarei de retratar isso. Seria como assumir a erotização da nudez. No entanto, já entendemos que as redes sociais não são o melhor espaço pra isso.
Depois de inúmeras censuras, deixamos essa parte do trabalho a ser publicada em livros, exposta nas paredes ou habitando nossos hd’s pessoais.
De onde vem a ideia do “Mamaço no Espaço” que posteriormente deu vida ao projeto “Anytime Anywhere” (Qualquer hora, qualquer lugar)?
O projeto nasceu da nossa experiência com a amamentação. Era 2015, poucos dias antes da Semana Mundial da Amamentação, o Kaiê era um recém-nascido e nós, durante uma conversa a dois, nos demos conta do caminho percorrido desde o nascimento da Yasmin, 4 anos atrás. Nossa relação com a amamentação mudou muito. De um casal envergonhado, que buscava isolamento na hora de amamentar, tornamo-nos um casal ciente da importância social das mulheres amamentarem onde e quando quiserem. Decidimos contribuir com a naturalização da amamentação em espaços públicos realizando uma série fotográfica. Compartilhamos nas redes essa nossa vontade e recebemos mais de 100 e-mails das mães de Brasília que estavam dispostas a participar desse movimento. As mães foram muito generosas e as fotos ficaram impactantes e bem surpreendentes. Conseguimos publicá-las em vários meios de comunicação e criar um espaço de discussão e diálogo. Dois anos depois, ao chegar a Polônia, ainda lactante, dei de cara com o mesmo preconceito. Foi o momento em que resolvemos tirar da inércia as mães polonesas e debater essa questão por aqui. Dessa vez fomos um pouco mais longe.
Conseguimos apoio de várias instituições públicas e organizações não governamentais e um patrocinador. As fotos ilustraram matéria na Newsweek e o projeto foi pauta num programa matinal do maior canal de televisão. A descoberta da universalidade do problema nos fez desejar repetir o processo em vários cantos do mundo. Estamos no momento de prospectar a realização do projeto em outros países da Europa e fora dela.
Brasil e Polônia: existe alguma diferença, Irmina, do comportamento social em relação à amamentação nos espaços públicos entre esses dois países?
As diferenças existem, mas são bem sutis. É um tanto curioso se pensarmos na distância entre os dois países. Após casos de expulsão das mães lactantes dos restaurantes ou pedidos de amamentarem seus bebês nos banheiros, criou-se na Polônia uma lei que pune esse tipo de discriminação. Uma lei parecida foi aprovada pelo Senado brasileiro e aguarda sua votação na Câmara dos Deputados. Entretanto, o que observo por aqui é uma inibição já enraizada, estrutural, que vem de dentro. Não é o que se pode fazer, mas o que convem ou não. A sociedade faz de tudo para convencer as jovens mães que o esforço não vale a pena. Elas são desencorajadas pela publicidade, pelo mercado de trabalho, pela rede privada de saúde e até pelas próprias famílias. Amamentar por aqui foi desnaturalizado. Tivemos provas disso durante a campanha. Alguns hates nas redes sociais referiam-se a esse suposto caráter “bizarro e atrasado” de nutrir um bebê a partir do peito materno. Isso foi uma novidade para nós.
O Brasil vive o aprofundamento da insegurança social, do caos político. Um futuro mais fraterno, igualitário e consciente parece distante. O barulho do que ocorre aqui chega até vocês? Como assimilam o que tem se passado aqui?
A gente tem acompanhado sim. As vezes dói tanto acompanhar que a gente se distancia. Há tempos não temos mais o costume de acompanhar o noticiário diariamente. Percebemos que eles trazem mais sentimentos ruins do que bons e que os supostos “conhecimentos gerais” só servem pra nos desviar daquilo que é de fato essencial. Em vez de conversarmos com amigos e familiares sobre o que a gente sente, entramos numa guerra de argumentos sobre algo que está muito distante da gente. Esses tempos, andando pelo sul da França, conversando com uma francesa que falava sobre questões politicas de lá, ela dizia que Paris é muito longe. E que “aqui é occitanie”. Fiquei pensando, se Paris é longe para o sul francês, imagina Brasília para o restante do Brasil.
Existe uma incompreensão e um distanciamento enormes do mundo da politica em relação ao cotidiano, ao que passa nas comunidades e dentro da casa dos cidadãos brasileiros.
Na minha visão, essa dicotomia que se criou não faz o menor sentido. É simplificar demais a existência humana. Acho que está mais do que na hora da gente entender que o nosso destino não está lá em Brasília, ou em outras capitais pelo mundo. Está na nossa casa. Se queremos um mundo diferente desse que está ai, deixemos o noticiário de lado e enfim percebamos os pequenos seres que estão puxando as barras das nossas saias e calças enquanto a gente está teclando ou mudando de canal.
Cogitam voltar?
Sem dúvida. Voltamos, partimos, voltamos... nossa vida tem sido assim e não sabemos quando será diferente.
Por Joaquim Cantanhêde
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